sexta-feira, 30 de maio de 2008

Detesto pobre e detesto rico

Norman Mailer dizia que a única diferença entre pobres e ricos era que os ricos tinham mais dinheiro. Concordo inteiramente com ele. Pobres e ricos são faces da mesma moeda. Pobre tem muito filho. Rico também. Pobre acha que é pobre por decisão divina. Rico está convencido de que foi eleito pelos céus. Pobre detesta gente de classe média. Rico, idem. E pobres e ricos se adoram. Entendem-se plenamente. O pobre admira o rico. O rico paternaliza o pobre. E, calcados neste binômio, eles representam, hoje, o futuro, onde não haverá mais classe média, esta classe tão atacada a que pertenço.
Sou pequeno-burguesa, filha de um pai médico, que atendia em consultório, com horário integral, durante o dia, e dava plantão em hospital público, durante a noite. E de uma mãe professora, que acordava às cinco da manhã, pra dar aula, e só voltava às 10 da noite. Foi assim que eu e meu irmão conseguimos estudar, comer, vestir, sobreviver... Herdeira da "classe média alienada", como diz minha canção com Suely Mesquita, "Filhote da ditadura", passei a vida sonhando com vôos rasantes. Queria ser professora de português e me formei em jornalismo, porque minha mãe, que acabou com sua linda voz de Julie London dando aula de inglês, me pediu que não repetisse o seu destino. Casei-me cedo, na Igreja Católica Apostólica Romana, não porque eu tivesse formação religiosa, mas porque meu avô português havia me pedido, e minha avó me subornado com uma pequena quantia de dinheiro. O início do meu casamento foi de muita dureza. Ganhávamos pouco, não tínhamos automóvel, dividíamos um apartamento de quarto e sala. Mas éramos jovens e eu corria pra casa do meu primo, no fim da tarde, para ouvir Fleetwood Mac, fumando uma erva que passarinho não bebe, à qual eu não estava muito acostumada, menina conservadora de Niterói que eu era. Dávamos boas risadas e eu voltava pra casa, pra jantar com meu marido arquiteto e ouvir, com ele, Thelonius Monk. Sim, eu era pequeno-burguesa, mas de uma família de intelectuais. Cultura, quase erudição mesmo, nunca me faltou. Faltavam muito itens de consumo, mas minha minúscula casa era abarrotada de livros e Lps. E cinema, na época muito barato, no mínimo, duas vezes por semana. Em virtude de ter crescido nesta família intelectualizada, eu era de esquerda, marxista-leninista e nunca sonhei que, um dia, ia me admitir membro da classe média, com tanto fervor, chegando mesmo a implorar pela volta da vassourinha de Jânio Quadros. Quando releio o manifesto comunista, hoje, tenho a impressão de que Marx e Engels acalentavam sonhos semelhantes aos meus e ao de seu colega opositor, Max Weber. Educação e saúde para todos eram palavras de ordem para esquerda e direita. Tanto Marx quanto Weber se posicionavam contra a monarquia, este regime de duas classes apenas: a rica e a pobre. E, no fundo, ambos queriam que toda a humanidade fosse apenas o que sou: classe média. Gozado imaginar que a classe média, de hoje, era o proletariado de ontem. A gente não recebe bolsa família, e paga IPTU, luz, gás, telefone, celular... Trabalha cada vez mais, para receber cada vez menos. E está ameaçada de extinção, porque ou vai pro alto ocupar o trono dos muito ricos, ou vai pra baixo, tomar cerveja nos botecos com os pobres, batucar um samba e ver novela. Coisa que pobres e ricos adoram fazer, neste país. Então, eu evoco uma revolução menchevique. Ou uma revolução burguesa francesa. Qualquer ação que nos salve. Nós, intelectuais de classe média, que sonhamos e lutamos por uma sociedade mais justa e que, em troca, recebemos dos injustiçados uma raiva deletéria. Esta mesma raiva com que minha empregada doméstica, que ganha um terço do que ganho, desligou o aquecedor velho a gás do meu apartamento, me privando de tomar um mísero banhozinho quente, depois de passar o dia inteiro num salão de literatura infanto-juvenil, autografando camisas de crianças de colégio público. Ao ver aquelas crianças, tão felizes, eu me senti making a difference, como nos meus tempos de esquerdista. Aceditei, de novo, no socialismo. E quase cantei a internacional comunista no microfone, durante a palestra que eu e a Suely fizemos. "Operários de todo mundo: uni-vos!" Mas aí, chego em casa, ligo o chuveiro e recebo uma ducha de água fria. A classe operária me traiu de novo. O Cazuza talvez tivesse razão ao dizer que a burguesia fedia, porque esta pequeno-burguesa, diante da sabotagem do lumpen local, está mesmo fedendo, sem seu banhozinho antes de se recolher à cama. Eu sou pequeno-burguesa e não sou artista. Porque detesto ricos e pobres, mas sou favorável á extinção dos artistas. Porque o artista é o grande responsável por este sonho milionário que se construiu nesta nação. Eu me dizia membro da última banda classe média, na mesma época em que Cazuza lançava sua canção-desabafo. Cazuza que tinha ficado rico e deixado de ser classe média. Cazuza que veio no bojo de um movimento roqueiro tipicamente classe média. Cazuza também me traiu. Woody Allen era de classe média. Dorothy Parker era de classe média. Clarice Lispector, Fran Lebowitz...e até meu amigo Luís Capucho, que um dia foi pobre, virou professor de literatura de classe média. Então, eu devo muito a esta minha classe e, salvo Cole Porter, e Clementina de Jesus, não costumo ter ídolos nem da classe dominante, nem da classe dominada. Ana Cristina César já dizia que o Altman era muito cruel com a classe média americana. Assisto à decadência do American Way of Life e do sonho americano. A América sonhou com os valores da classe média. Muitos cretinos, mas outros, como justiça, ombridade, ética, muito louváveis. Os soviéticos também se empenharam em constituir uma nação classe média, trazendo o proletariado para o conforto mínimo da pequeno-burguesia. América e a URSS não se sabiam tão aliadas. E, na ignorância menchevique-bolchevique de ambas, tornaram-se inimigas. O resultado foi o fim do socialismo, de um lado. E agora, o fim do capitalismo, do outro. Marx e Weber eram irmãos e não sabiam. A Europa monarquista e colonizadora renasce, revigorada. A Ásia imperial ressurge das cinzas.

Intelectuais de classe média, de todo o mundo, uni-vos! Antes que a corte dos Luíses nos atire brioches dormidos e as luzes se extinguam de vez. Nesta treva idade média sem classe, onde nossos apontadores, lápis, borracha e cadernos de apontamentos serão atirados ao esquecimento. Nossos livros à decoração das estantes coroadas. E nosso banho quente confortável, nosso único momento de nobreza, convertido num choque térmico traumático que, entretanto, talvez nos desperte para a injustiça de que, pasmem!, somos afinal as maiores vítimas.

Mathilda Kóvak

6 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom , como todos os poucos que eu já tive oportunidade de ler.
Bom ter descoberto esse blog!

Renan Sanves disse...

Eu tb ficaria furioso se fosse tomar meu banho quente e me caísse água gelada. Na casa onde moro não tem chuveiro elétrico. Quando quero tomat banho quente tem que ser à moda antiga. De cuia, como dizem. E eu até gosto.
Quem me dera ter a casa cheia de livros e discos. Já li mais de quatrocentos livros e dessa quantia, menos de vinte são meus.
Quanto aos ricos e aos pobres, nem sei o que dizer. Só sei que sou pobre e hipocrisia à parte, adoraria ganhar muito dinheiro.

Renan Sanves disse...

E costumo dizar aos meus companheiros de periferia: Se já somos pobres, pelo menos temos que ser inteligentes, educados, limpos e honestos.

luiscapucho disse...

Nunca fui professor de literatura de Classe Média, Mathilda. Meus alunos são pobres ainda hoje, do interior, e fariam textos de fofoca sobre os artistas do Brasil, no Capricho.
Eu nunca participei de assuntos da Classe Média, porque não sei conversar, gosto de assistir...
A Classe Média pra mim é homem...rs. Tou fora...

Maria Lindgren disse...

Esta é a Mathilda que eu admiro. Sem toaletezona total, mas cheia de graça.
Maria Lindgren

walter disse...

Mathilda!
Eu ODEIO VOCE!!!!

Ha,ha,ha,ha...
E irei destruir todos os seus fas clubes.