sexta-feira, 30 de maio de 2008

Fãs e afãs

Eu acho que, desde a adolescência, que não sei o que é ter um ídolo. Alguém que eu coloque em um pedestal e do qual não queira que saia nunca. Mas meu primeiro ídolo, aos 12 anos, foi Ingrid Bergman. Eu tinha por ela a idolatria que Woody Allen tinha por Humphrey Bogart e foi por isto que fui ver "Sonhos de um sedutor - Play it again, Sam - e passei a idolatrar também Woody Allen. Porém, quando Woody Allen traiu Mia Farrow com a filha adotiva, eu estava em Nova York e fui até a porta do prédio em que ele morava, onde a imprensa e fãs se reuniram para baixar-lhe o cacete, e gritei, a plenos pulmões: "pervert." Achei, ainda, o máximo, quando Frank Sinatra, ex-marido de Mia, que lhe tinha muito afeto, perguntou a ela se ela queria que ele mandasse quebrar as pernas de Woody. Contudo, a imensa sacanagem que Woody Allen fez com a mulher não impediu que eu continuasse a idolatrá-lo. Artistas são pessoas vulneráveis, capazes de vilezas maiores do que as de seres humanos comuns. Todo artista é mau caráter. Não porque tenha má índole, mas porque não sabe sequer o que seja ter caráter. Um artista é um amoral, melhor dizendo. Um ser que desconhece a moral. Assim, Ingrid Bergman largou a filha por Rosselini. Depois largou os três filhos com o Rosselini por um outro amante... A história do showbusiness é cheia de episódios imorais. Eu sou apaixonada por Mick Jagger, mas tenho certeza de que ele é um babaca. Investigo à exaustão a vida de Jennifer Saunders e não consigo encontrar uma mácula em sua história. Mas não me surpreenderei se, numa crise de idade, ela sair fazendo coisas malucas. A única superstar com quem tive oportunida de conviver era uma chata. E eu demorei uns 10 anos para me dar conta de que ela ficava em último ou penúltimo lugar na lista de pessoas interessantes com quem cruzei na vida. Mas entendo que minha cyber filha não tenha gostado da entrevista de Ruby Wax com a Madonna. Não sei se ela viu toda, porque aqui eu sou colei duas partes e tem cinco. Mas eu acho uma das melhores entrevistas que já vi. Exatamente pelas mesmas razões que a Mary Fê não gosta. Madonna ali aparece como uma chata. Uma mulher insegura e preocupadíssima com a beleza. E é exatamente isto o que ela é. Eu adoro Madonna. Nunca tive um disco sequer dela. Mas seria capaz de comprar todos os DVDs. Acho que ela canta mal, não escreve bem, dança pessimamente, e não é nada bonita. Mas ela é como Marlene Dietrich, que dizia não ser nem atriz nem cantora, mas apenas uma personalidade. E isto, não canso de falar, é artigo de luxo, hoje em dia. O que me interessa e sempre me interessou na Madonna é sua personalidade controvertida. Acho que ela representa bem a virada do século XX pro XXI, a era de Aquarius, o individualismo, a cobiça, a armação, mas ela sabe perfeitamente disto tudo e, ao receber um prêmio, admite que tem que ser muito filha da puta pra chegar onde chegou. E revela que trocaria dinheiro e sucesso pela mãe que perdeu aos seis anos. Madonna é, para mim, uma heroína trágica, cuja tragédia maior foi, talvez, não ter se suicidado como seu grande ídolo Marilyn Monroe. Se o fizesse, ela provavelmente não seria chamada de grife, como fez um leitor muito perspicaz aqui do blog. Ela não teria virado este tipo de grife. Teria virado uma grife cult como Marilyn. Eu não levo Madonna a sério. Acho-a engraçadíssima. Para mim, ela tem a importância de ser a derradeira representante da cultura de massa, do superstar system. Madonna é competente. E esta é a palavra de ordem do século XXI. Então, ao vê-la tão frágil, tão fêmea, tão sem poder, na entrevista de Ruby Wax, sofri o mesmo impacto que me abateu, ao ler o livro de Norman Mailer sobre Norma Jean Backer, Marilyn Monroe. Eu achava Marilyn uma comédia. Adorava-a, mas não a levava a sério. Até que vi uma foto sua, morena e sem maquiagem. Ali, eu vi a mulher Marilyn Monroe. E me apaixonei perdidamente por ela. O Baudrillard dizia que o poder da mulher é o não-poder. Para mim, o poder da Madonna é o seu não-poder. Não poder ser Marilyn. Não poder ser a estrela de cinema que ela queria ser e que Hollywood impediu. E, nesta entrevista, Madonna aparece maquiadíssima, mas, simultaneamente, sem maquiagem alguma. Madonna aparece de cara limpa, vaidosa, insegura, mulher. Mais adiante, ela fala que gosta de apanhar, que a gente se apaixona por quem nos bate a porta na cara... Madonna é uma vadia. E eu me identifico inteiramente com ela. Temos a mesma idade. Eu a vi atravessar a Thompkins Square, em NY, levando um pão numa sacola. Entrou numa deli. Entrei depois que ela saiu. Todos se perguntaram: "é a Madonna?" Até hoje tenho dúvidas, mas já passou a ser pra mim. Uma tampinha, igual a milhares de americanas. Igual a milhares de brasileiras. Bing Crosby dizia que o segredo de seu sucesso era o fato de ele cantar tão mal que qualquer um achava que poderia cantar como ele. Madonna sabe que canta mal e que não é bonita. E seu nervosismo na entrevista se deveu ao fato de se saber somente uma imagem. E que imagem. Desde os áureos tempos desta Hollywood que a desprezou, o mundo todo se curva ante uma imagem perfeita. Greta Garbo era canastrona, falava um inglês macarrônico, mas era uma imagem perfeita. Madonna é uma imagem perfeita que, na entrevista de Ruby Wax, pode ser afetada. E isto a afeta igualmente. Não porque ela padeça de falta de personalidade. Mas porque ela é dona de seu produto. É ele que lhe assegura a liberdade de ser vadia, mulher de malandro, mãe de família, aspirante a avó... A superstar Madonna é o superhomem de Clark Kent. A superstar Madonna protege a mulherzinha Madonna. E ela, a mulherzinha, é adorável. Madonna, sem os músculos do palco, ao se preocupar com a câmera, não é mais o andróide másculo que encanta multidões, mas, sim, a mulher, o eterno feminino, a flor do asfalto que zela por sua redoma de vidro, para que não lhe roubem o tesouro de sua fragilidade.

Quanto a John Cage, também acusado de grife por nosso leitor, nunca gostei, mas aqui é um banheiro em que duas gerações marcam encontro. Nós que fomos dos eighties fazíamos piada de sua música contemporânea. Mas, de algum modo, ela hoje influencia jovens que também foram influenciados por nós. Assim como Burt Bacharah me influenciou e isto me custou o dissabor da patrulha roqueira dos anos 80. Adoro Madonna. Detesto John Cage. Mas o que amo, de fato, é não ter razão e usufruir plenamente do gozo da discussão.

No mais, acho bonito sair em defesa de um ídolo, ou em ataque de outro. Mas, como dizia Rhett Butller, frankly, my dear, I don´t give a damn. Nem Madonna nem John Cage saem por aí falando a meu respeito, seja bem, seja mal. Eles sequer sabem da nossa existência. Então, se eles passam sem nós, estou convencida de que podemos passar sem eles. Porque esta é a única vantagem de se viver num mundo superpopuloso. Todos somos facilmente substituíveis. Suspeito que, daquei a cem anos, ninguém saberá de nenhuma dessas pessoas que comentamos aqui no blog. Mas seus descendentes contarão suas histórias uns aos outros. É por isto que tenho uma cyberfilha. Para que ela conte minha história para sua filha. E a sua filha a sua para a filha dela. Porque desde que o mundo é mundo o que é verdadeiramente importante consiste apenas no que está perto de nós, ao alcance de nossas mãos e diante de nossos olhos. O resto é só coleção de álbum de figurinhas, vendido, no futuro, numa feirinha de antigüidades.

Beijos,
Mathilda.

4 comentários:

Servio Tulio disse...

É muito interessante falar sobre isso tudo. O Raul, que toca comigo no Saara adora a Madonna. Semana passada ele me mostrou um DVD de sua última turnê, por assim dizer. Como não acompanho muito o trabalho dela, fiquei estupefato com a produção do show. Na verdade, fiquei mesmo é bastante confuso, pois não sabia se achava legal ou não. Quando falei sobre Cage e Madonna no post da Fê, não estava em absoluto elogiando um ou depreciando outro. Eu estava é achando engraçado como existe uma ponte entre tudo. Entre Cage e Madonna e outras coisas mais. É divertido pensar assim, eu acho. Como o tempo transforma as coisas é o que me fascina. Ontem eu estava ouvindo o Pierrot Lunaire do Schoenberg cantado pela Mereth Becker. Atriz e cantora alemã que tem um trabalho super fora de órbita. Fiquei imaginando o que deu na cabeça do maestro Kent Nagano para chamar a Mereth para fazer o Pierrot em um festival na Alemanha. Enquanto ouvia (como era uma gravação ao vivo), fiquei imaginando o que o público deveria estar achando, os músicos do conjunto de câmara, o maestro.... Ela fez o que quis com a obra "tão histórica" do Schoenberg. Isso tudo me deixa excitado e muito curioso. Eu não queria com o que disse para a Fê colocar uma barreira entre Madonna e Cage. Eu estava fazendo uma ponte. Estava apenas rindo de mim mesmo e dos meus conceitos os quais estão sempre em movimento. Eu também não me importo com nada disso. Desculpe se soei babacão....

Beijão Math e Fê

Renan Sanves disse...

Não acompanho o trabalho da Madonna. A única música que conheço dela é ''La isla bonita'', que gosto bastante pq acho sensual. Já o John Cage eu nunca ouvi falar. Sou leigo quando se trata de artistas internacionais. Isso não quer dizer que eu não goste.
E tenho mais a dizer: Mathilda, você é demais!

Renan Sanves disse...

eQuanto a ter ídolos, lembrei de um verso da Bruna Lombardi do poema ''Identidade'', onde ela diz: '' tenho vinte e tantos anos e nenhum ídolo''...

Eu tenho ídolos. Vc é um deles, Mathilda!

Dulce Quental disse...

Querida Math,

Você tocou em pontos importantes no seu texto sobre Madonna. Sua fala me lembrou Camille Paglia e Andy Warhol. Camille porque foi a primeira intelectual feminina a trazer a discussão sobre a arte de Madonna para o universo acadêmico. Andy Warhol, porque assim como Madonna, realizou o impossível que é conseguir incluir dentro do discurso capitalista alguma coisa que não faz parte dele. Não dá para pensar a cultura de massas do fim do século XX para o século XXI sem se lembrar deles.

No entanto, eu acho que aquilo que nos serviu há alguns anos hoje não serve mais. Madonna não tem mais o mesmo efeito. Ela foi devorada pelo sistema. Foi vitima do seu próprio sucesso. Acho que isso faz parte do jogo entre artista e mercado. Cabe ao artista tentar remodelar os significantes confeccionados pela cultura de massas, que em si mesmo já são esvaziados de significação, e os transformar em linguagem. A maior parte dos artistas se perde no caminho dessa pretensão. Mas aí surgem novos artistas com novas formas de criação. Madonna se reinventou até certo ponto depois esbarrou nas suas próprias contradições, talvez porque tenha se levado a sério demais, ou porque tenha deixado as máscaras de lado e vestido a sua face mais puritana e conservadora, mulherzinha, recalcada, social climber, complexada. Madonna foi vencida pelo sistema. Mas o tempo em que brilhou foi pura transgressão.