quarta-feira, 19 de março de 2008

Bobi Math, Bibo Mary

Cyber mãe e cyber filha se desencontram no tráfego carioca, mas conseguem se reencontrar no banheiro.

Sim. Eu voltava da fisioterapia, onde fui ajustar meus parafusos de mulher biônica, andróide andrógina, replicante implicante, quando entrei num táxi, com muita dificuldade, posto que as engrenagens desta máquina que inspirou Phillip K. Dick e congêneres mal consegue efetuar as quatro operações: andar, sentar-se, curvar-se, levantar-se. Então, levei mais ou menos uns 10 minutos pra conseguir entrar na viatura. Quando, já ofegante, pronunciei, resfolegando, o destino, o boçal disse que sentia muito, mas não levava. Com a maior placidez do mundo, conquistada graças ao esforço colossal com que, Frida Khalo pisado, me locomovo, respondi: só saio deste carro numa delegacia. Se o senhor não me levar, casso sua carteira de motorista. Com cara de quem iria puxar uma arma, o machão enfiou o rabinho entre as pernas, e dirigiu, todo solícito, quarteirão por quarteirão, dizendo que não podia falar, ao celular, porque estava num engarrafamento com uma passageira, mas que, tudo certo, era sua obrigação... Ter minha dignidade restituída, por mim mesma, por alguns minutos, arrefeceu as dores físicas de que padeço, a ponto de poder voltar a este veículo, bem mais seguro e confortável, para um colóquio lavatorial com minha única herdeira que, por sua vez, ficou detida no trânsito, em virtude de uma procissão de Semana Santa. Na hora do rush?! Isso só pode ser parada do Tinhoso! Em suma, não conseguimos nos cruzar neste inferno desta cidade. Mas Mary me avisou que havia postado novo texto e vim conferir.
Ao descobrir, assim, ao acaso, que ela é telespectadora do Big Brother, confesso que senti palpitações. Pensei em telefonar para minha psi, ou mesmo para um padre, me confessando e perguntando: "onde foi que eu errei?!" Mas, de repente, me dei conta de que minha reação se parecia com a de minha mãe, quando descobriu que eu gostava de ver filmes trash, como "A aranha", "A mulher de 15 metros", ou programas de auditório, menos Chacrinha, que sempre foi cult, mas programas como o Bolinha, de São Paulo, "Bambas e barbadas" e similares. Não, eu não quero reproduzir minha família de intelectuais xiitas, que não permitia que eu ligasse a TV, depois das 10, para assistir ao Sheik de Agadir, telenovela de Gloria Magadan, com Ioná Magalhães e Henrique Martins, passada na Legião Estrangeira, no deserto de saara das dunas de Cabo Frio.

Pois é. A gente nunca acredita que o trash de hoje será o cult de amanhã. Quando eu penso que joguei meus ray bans aviator todos fora, por achar que tinham se tornado bregas, e paguei uma fortuna para reaver um par, numa feirinha de antigüidades... Ainda bem que não sou dessas que se desapegam e tenho em meu poder, neste apartamento, o século vinte ilustrado, de cabo a rabo, em milhares de objetos-fetiche, além de roupas de todas as décadas, coleções e mais coleções de quinquilharias, que deixariam Andy Warhol humilhado. Quando entraram na townhouse de três anadares do artista, depois de morto, tinha tantos objetos, que contam que ele havia ficado confinado num de seus muitos quartos, porque era impossível transitar pela casa. Só de relógio de Mickey havia uns trezentos! Andy era uma espécie de Imelda Marcos do pop. E eu sou uma espécie de Warhol das Filipinas (?) E ainda que eu divida este WC limpinho com Mary Fê, clean jamais serei. Porque, pra mim, é coisa de hospital. E eis meu problema com o BBB. Aquilo me parece uma internação. Só que, ao contrário dos personagens de "O alienista", de Machado, por exemplo, ou mesmo os de "Um estranho no ninho", de Milos Forman, ou ainda de "Esse mundo é dos loucos", de um inglês de quem não me lembro o nome, aqueles personagens me parecem todos insípidos. A Emdemol, empresa holandesa, foi, como todo endemoniado - olha ele aí, de novo!, de uma crueldade sem par, ao pegar a metáfora de George Orwell, e a transformar em realidade. Cruel, porque inteligente. A maioria das pessoas que assiste ao Big Brother desconhece o fato de que ele existiu, num romance de 1948, no qual ele vigiava, não apenas um grupo, mas o mundo inteiro, através de câmeras de TV, com as quais controlava as pessoas e comandava seus destinos. O Big Brother foi recriado no cinema, não apenas na adaptação de "1984", em que a trama se passa, ou na alegoria "Brazil", de Terry Gilliam, mas no maravilhoso Farenheit 451 que, por sua vez, se baseou no romance homônimo de Kurt Vonnegut, já calcado no de Orwell. Isto para não falar em "O dorminhoco", a paródia de Woody Allen. Entretanto, nenhum desses autores suspeitava que o Grande Irmão, vilão de toda a nossa espécie, iria reencarnar num programa de TV, mistura de panóptico e coliseu romano, onde os gladiadores malham, como os do Império Romano, mas quem é pichado e atirado aos leões, no final, é o público. Quer dizer, Andrew Nicol imaginou o Truman Show, admitamos.

O BBB também lembra "A noite dos desesperados", filme de Sidney Pollack, inspirado no romance "They shoot horses don´t day", que transcorre durante uma maratona de dança, na depressão econômica americana de 29, em que o casal que resistir mais tempo dançando, e isto significa semanas, com mortes pelo caminho, ganha uma bolada, suficiente para matar a fome durante alguns dias. Eis a diferença: a fome daqueles desesperados era de comida. A fome, deste atuais, é de fama. Morre-se de fama, como provou Lady Di(e), tanto quanto se morre de fome dela e de outras iguarias, ambrosias do olimpo nosso de cada dia. Dali, deuses decaídos, atiramos nossos pares aos leões. Até mesmo os de ray ban! Não há novidade alguma nesta matemática, panis et circencis. A diferença, entre o espetáculo de hoje e o de ontem, é que o seu inventor lia George Orwell, tanto quanto eu e outros antes e depois de mim leram. Porém, eu entendi que o Big Brother criado por ele era um perverso. Já o criador do BB o domesticou. O Big Brother da Emdemol é o Frankenstein de Mary Shelley. O monstro maior que o médico. O mito maior do que o autor. Varou quase um século, como os objetos que repousam em minha casa, apagou George Orwell, com sua crítica ferrenha à falta de identidade da massa, e instituiu um anti-herói, aparentemente, inócuo. E, talvez, de fato, seja. E, talvez por isto mesmo, ele seja mais terrível que o Grande Irmão. O Big Brother de agora é anódino, inofensivo. Eu não posso dizer para minha filha desligar a tv, porque ela não é idiota. Vê o BBB através da lãmina da mesma fina ironia com que enxerga o mundo sem futuro que deixo pra ela. E o pior de tudo é que ela ainda me brinda com a isca mais perversa de todas: a sedução do BBBrit. Esses ingleses sabem seduzir como ninguém. Não por acaso Mary Shelley e Frankenstein eram ingleses. Fui fisgada pelo monstro britânico. Vou correr, com minha perna remendada de Frankenstein tupiniquim, pro youtube, pra acompanhar os passos da traveca engraçadíssima no encalço de seu casado de pele de gorila. O perfeito nonsense que só esses malucos da Inglaterra conseguem criar, com aquele jeito suave. O Big Brother original também nasceu na Inglaterra. Mas ele não tinha esta voz cativante de Iris Letieri. Vou, então, pegar o próximo vôo pra Londres. Vou me candidatar. Vou dançar até morrer na depressão econômica de 2009!

E todos vocês irão dizer: "at last, she was saved. She loved the Big Brother."

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