quarta-feira, 12 de março de 2008

O 171 do 1808

Mas o que é que há para comemorar na transferência da corte de Dom João VI para o Rio de Janeiro?! Já não basta o que a gente passa nesta cidade, desde então?! O Rio vive mergulhado na nostalgia da corte. Às vezes, este saudosismo migra da corte para a capital, que se mudou para o planalto central. Eu não sei como seria o RJ se tivesse sido poupado de ser corte, mas, por ter sido, vive a ilusão de que ainda o é. Incrível como os cariocas se julgam superiores aos cidadãos do resto do Brasil. Claro que me refiro ao carioca da gema, o carioca que freqüenta praia, sobretudo o da Zona Sul. Minha querida filha é carioca e não tem esse cabeça (cari)oca. Tenho alguns amigos aqui que também são mais cosmopolitas. Mas o espírito da cidade é este: o da corte. Então, o que é ser corte? É não fazer nada pela cidade, porque aristocrata não trabalha. Julga-se ungido pelos deuses, legítimo representante do Altíssimo na Terra. Então, para quê se mexer, enquanto sua cidade cai aos pedaços?! Haverá um momento em que um deus ex machina entrará em cena e resolverá tudo!

Aqui, tudo funciona movido a megalomania. A corte está sempre desembarcando e, com ela, um carnaval monumental, jogos panamericanos panteístas, o melhor futebol do mundo...E toda esta existência superlativa é propagada pelas networks, sediadas na corte, para o resto do país, para que ele saiba que é o melhor do mundo, tanto quanto o Rio é a cidade maravilhosa, a mais linda... Só que estas hipérboles encontram na realidade outros recordes quebrados: o maior índice de morte por assassinato numa cidade que não está em guerra declarada; o maior índice de analfabetismo em cidade grande; a maior incidência de dengue no mundo...etc etc.
Mas os cariocas continuam a acreditar que moram na corte de Dom João VI, que maqueou a cidade, para se instalar nela, do mesmo modo que o prefeito César, o czar da cafonice, o faz para receber os gringos que aqui aportam nos megaeventos produzidos por ele com os tributos cobrados ao povo. E este aplaude, nos estertores de sua saúde mal atendida, de sua qualidade de vida sem nenhuma qualidade.

O Rio obedece a estrutura da corte portuguesa, desde o século XIX. De um lado, temos os cortesãos, com seus privilégios, enaltecendo as maravilhas da cidade. Do outro, os fodidos, que fingem acreditar nelas, para não desagradar a corte. A corte adora o povo. E o povo adora a corte. Samba e carnaval são coisas típicas de socialite. É o momento em que a corte saúda o povo, comunica sua cumplicidade com ele, mas sempre distante, do camarote. As networks, por sua vez, fazem o papel do arauto, da matraca, que divulga, para o resto da colônia imperial penal, os acontecimentos culturais urdidos na corte, todos bem ao gosto popular. A corrupção, o jeitinho, as armações, "filho bastardo? ah, faz um banco do Brasil pra ele!", continuam representados tanto na administração pública quanto no narcotráfico, protegido por ela.

E é claro que toda corte tem seus loucos. Profetas das ruas. Mendigos que se proclamam nobres. Aos montes. Cada vez mais.

A miséria é santa. E a corte é pobre.

E alguns, como eu, fazem o papel de imprensa analítica, camuflados em suas casas e casamatas, atirando seus projéteis de alvo certeiro e mira aguçada. Aparentemente inócuas, as palvras são donas de estranha potência. Nossas palavras não são balas perdidas que derrubam os inocentes nas ruas. Nossas palavras são tiros da desobediência civil, que vai mandar a corte pra puta que pariu!