sábado, 22 de março de 2008

Come chocolates, pequena...

Ontem, passei muitas horas na companhia de minha cyber filha. Mas foram horas reais, ao vivo. Não gosto muito de blogs confessionais, que parecem diários sem cadeado. Mas senti vontade de falar, num tom algo confessional, talvez, característico da antiga crônica, ou do que eu costumo chamar de minhas crônicas anacrônicas, sobre este grande prazer que é conviver com Mary Fê. Eu sempre achei que ter filho era a maior egotrip da face da Terra. Nunca me considerei tão maravilhosa a ponto de desejar me reproduzir. E creio que, por mais que o DNA determine, ou a formação erigida no convívio, a filiação é da ordem do mistério, como aliás já mencionei em texto anterior. O reconhecimento da cara metade é algo inefável. Assim, muitas vezes nos enganamos, ao nos depararmos com o que poderia ser uma soul mate. Passamos a vida, como em Platão, à cata desta metade que nos foi tirada na origem. Mas o caso do reconhecimento de uma filha é outro. E ele, não raro, costuma falhar nas famílias. Canso de ver mães e filhos mergulhados nas dores da decepção. Porque filho é um projeto. E esta construção nem sempre se firma, segundo o desenho que imaginamos. Assim, a mágica sucede a realidade, quando topamos com alguém que, a despeito de todas as diferenças, guarda uma identidade tão irrefutável com o que somos, que só podemos nomeá-la filha.
Ontem, fomos a janela olhar uma procissão patética. Meia dúzia de gatos pingados. Os duros que não puderam deixar o Rio no feriado a carregar o corpo de Cristo pelas ruas da Gávea. Para mim, a Páscoa não signifa mais que um coelho de olhos vermelhos e pêlo branquinho e ovos de chocolate. Este sentido religioso me escapa, porque não tenho, nem nunca tive, nenhuma formação desta ordem. Sou simpática ao judaísmo e celebrei o Purim, com amigos judeus, e o rabino Nilton Bonder, que se vestiu de um personagem que criei pra ele, especialmente para comemorar o equivalente ao seu carnaval: Rebe Camargo. Ele teve a ousadia de comandar um serviço religioso, com uma peruca loura e um tailleur. Fizemos, ainda, com Soraya Ravenle, um texto meu e de minha amiga Joice Niskier, "A rabina rebelde", edição iídishe de "The sound of music". E eu pensei como a liturgia judaica é muito mais alegre que a cristã. Acho que o rabino Joshua Ben Josef, vulgo Jesus Cristo, não iria aprovar este chororô católico.
Por falar em judeu, hoje fui ver "I´m not there", filme sobre a obra de Bob Dylan. Simplesmente amei. Comentarei com mais pormenores em outro texto. Porque este é pra dizer que tive uma Páscoa ótima, que se iniciou no primeiro dia do ano astrológico, no Purim. Estendeu-se na sexta-feira santa, na companhia da Mary. Em seguida, Dylan e sua cabeça alucinada. Lancei há anos um CD de canções minhas em inglês, cantadas pela Katrina Geenen, uma americana genial, e produzido por meu parceiro Paulo Baiano. Fui comparada pela crítica de Nova Orleans a Bob Dylan. Female Bob Dylan me chamaram. Também me chamaram de Joni Mitchel e de Derridá, rsrs. Mas sabe que, guardando as devidas proporções, eu me acho parecida com Bob Dylan. Ele era um judeu que se fazia passar por um vagabundo de origem irlandesa. E eu sou uma vagabunda de origem indígena que se faz passar por judia.
Mary Fê, graças a Deus, herdou minha habilidade com as palavras e minha imaginação, mas não é louca e kamikaze como sua mothern. É uma mulher do século XXI. Pé no chão e cabeça no arco-íris. E esta é uma das razões que me fazem crer que ela irá dar forma ao nosso delírio congênito. E, quando ela tiver a minha idade, vai estar anos-luz à minha frente agora. Ela ainda não tem esta visão. Mas eu, que já estou no middle of the road, vejo claramente. A geração de Dylan inventou o sonho. A minha questionou o sonho. E a geração da Mary, esta vai realizar o sonho. Como disse John Lennon: o sonho não acabou. Ele ainda nem começou. A Era de Aquarius iniciou-se com as piores características do signo: individualismo, necessidade de projeção pública, leviandade. Mas agora o lado bom se nos afigura. A vanguarda, a revolução, a transformação, o novo, o futuro...Nós que nascemons na era de Aquarius somos todos aquarianos. Tanto para bem, quanto para mal. Os mais afoitos se adaptaram de cara à pior parte. Mas os desconfiados, como eu, engendraram sua insurreição à sombra. E agora empunham suas lanternas, para que os jovens pisem o caminho da harmonia, da compreensão, da confiança, da solidariedade, na certeza de que esta é a única escolha possível, para todas as crenças, credos, doutrinas, ciências, artes... Cheguei a duvidar, por instantes, na confiabilidade desta trilha. Mas, ao ver Mary Fê, Marie Feau, surgir na porta do meu apartamento, com sua mochila nas costas, e seu jeito aerodinâmico de se locomover, entendi que ela já estava pronta pra pegar a estrada e levar nos bolsos alguns bocados de uma alucinação que custou muito caro a nossas cabeças, que veio de muitas outras eras, até nós, através dos séculos. Para que alguém como ela guardasse e usasse toda vez que a força centrífuga da Terra e a força centrípeda do Universo estivessem ameaçadas pela realidade. "Come chocolates, pequena. Quem me dera comer chocolates com a mesma verdade com que comes." Se desaparecer mesmo a língua com que foram escritos estes versos, por favor, invente outra, e recrie a história...

Um comentário:

Anônimo disse...

Math, pelamordedeus, você tá indo longe demais!
Que vc se parece com Clarisse Lispector, já sabemos.
Com Danuza Leão, vá lá.
Com Liz Taylor...Hummmm.
Com Emilinha E Marlene, lógico.
Mas BOB DYLAN???!!!!
Francamente.
Sinceramente, acho que cê tá mais é pra coelhinha da Páscoa mesmo...
bjks